18/12/06

Actos - 2

Deixo que me batas mais um pouco, pois então!
Se já me sinto tão oco, que nem a sombra se me aproveita,
Se nem quero uma mão, se é o teu braço que ma deita!

Sabes, já não me custa dar a cara ao sabor da pancada,
mas caramba!:

Já que vais dar, que seja por nada!

01/12/06

Actos - 1

Nessas noites, a porta fechava-se com mais força, e os seus passos eram mais lentos sobre o soalho pesado.
Trepava a cama, subia sobre mim, e nesse instante toda a cidade se silenciava, o tempo perdia o sentido e as palavras deixavam de existir, numa investida, noutra, e em mais uma, final, até que o mundo todo morria cá dentro. Depois, rolava para o lado.
No outro dia, os seus olhos eram baços, sem luz, encortinados no soluço da memória.

Afinal, a pior dor é que não descobre as suas razões.

29/11/06

A água sulca e segue

Chovia há dias, de forma quase ininterrupta. Por ele, isso não era razão para adiar o encontro, mas ela mantivera-se relutante, e só hoje acedera. Havia um Sol frio e seco, uma atmosfera vítrea que lembrava as manhãs meigas de montanhas distantes.
Ele esperava sentado à mesa, na esplanada coberta, ia olhando as gentes sempre apressadas do fim de tarde. Por momentos, os raios do Sol, quase ténues, fizeram espraiar sobre a mesa as sombras cintilantes da gasosa que borbulhava ansiosa à sua frente. Ela, a mulher esperada, chegou.
- Olá - disse, enquanto de sentava.
- Ainda bem que vieste. De facto, tem estado mau tempo...
- Sim, é verdade.
O olhar dela, mesmo acabado de chegar, mostrava alguma impaciência.
- Sabes, queria que nos encontrássemos porque tinha algumas coisas para te dizer - avançou ele tentando disfarçar a indecisão -. Depois de termos estado juntos, não sei... fiquei com a sensação de que se tinha gerado qualquer coisa, senti-me bem, quando pensava em ti.
- Ora, conversámos um pouco, era uma festa aborrecida...
- Pois, talvez... devo-me ter precipitado. Sou muito sensível a certas pessoas, e depois fico a imaginar coisas. Não devo estar habituado a gerar interesse nas pessoas, tê-las a ouvir-me quando não precisam de o fazer.
- Bem, foram conversas normais, que se podem ter com um desconhecido, ou com um conhecido de longa data - a sua face férrea apenas transparecia indiferença -.
- Talvez. É que há coisas que mexem comigo, não consigo explicar. De alguma forma, fizeste-me lembrar uma pessoa que conheci: carinhosa, preocupada e atenta, incapaz de testemunhar a injustiça com indiferença... maternal, até. A partir dela, fiquei sempre a pensar que precisava de encontrar alguém totalmente diferente, desafiadora, surpreendente, desligada do meu mundo. Mas depois conheci-te, e foi como se me tivesse resignado, como se apenas certas coisas fizessem sentido, e não valesse a penar lutar contra isso. Passei os últimos dias feliz, só me apetecia andar à chuva como se estivesse um Sol de Agosto. Mesmo fisicamente, não sei... um semblante parecido, uma elegância própria, o cabelo castanho sobre a pele morena... foi como se tivesse, ao conhecer-te, a hipótese de conhecer essa pessoa de novo, renovado...
Aquelas palavras tinham-na deixado curiosa, as mulheres fascinam-se pela emoção verbalizada de qualquer homem, sentem-no como menino.
- Essa pessoa... amaste-a? -
- Sim, amei.
-E ela amava-te?
- Tanto quanto percebi, sim.
- Então, o que aconteceu? - pela primeira vez, a sua voz vibrou incerta, e ele percebeu na fraqueza a presença da pessoa que inundara os seus últimos dias.
- O que aconteceu? Nem sei bem... - respondeu, com um franzir de sobrolho preguiçoso e optimista, enquanto se levantava da cadeira - o amor acaba, acho.
Encostou ao de leve a sua face na dela, obrigando- a a conter sozinha o "Já vais?" que engoliu seco.

À volta da esplanada, a noite chegara, e a chuva miudinha começava a cair com mais força.

28/11/06

Beijos púdicos, ideais

Não quero mais os beijos públicos, liceais.
Nem a ânsia da mão alheia,
que nos rodeia sem tocar,
nem as línguas mastigadas sob os dentes que estalam,
nem o tempero da saliva diluindo as peles macias.

Os meus beijos hão-de ser serenos,
no recanto de um quarto,
entre as quatro paredes sólidas por onde os olhares não passam,
e que barram as paixões insanas legadas ao silêncio.

As lágrimas que correrem serão curtas,
embrenhadas e feridas,
carne tenra dos gemidos,
desarme imenso de todos os sentidos.

Não quero mais os beijos públicos,
da inocência pura,
descoberta de si.

Creio que estou a ficar velho.

11/11/06

Boneca de pedra

Olá, boneca de pedra
Sei que não me ouves,
Olhos marcados de infinito
Afastados de mim.


Menina de silêncio.

As almas são de cristal
Porque fazem as palavras durar mais tempo.
As minhas, vêm de dentro.
As tuas, são apenas vento que fica.

Boneca de gesso,
Crua e despida,
Que me tiras de um só trago
Tudo o que trago desta vida!
Espero que vejas, do silêncio da redoma,
Que as palavras também doem,
E as ausências também passam.

Por isso, de castigo, ficas aí, dentro do vidro,
Acompanhada do impúbere, casto e branquinho almofadado,
Menino Jesus nado.

25/10/06

Trova vaga

Vagueio sem destino _ teus sete mares de menino, onda curva de um só porto, amarra inteira que ama errada os navios do seu corpo.

Ponteio de mansinho _ areia quente _ventureira, onda turva de rocio, espuma seira onde cabem os abismos, espraiando _ grãos _ praia terreira, descaminho.

Alheio _ ensejo cimo de entrares _ rompante cru em minhas rotas, transporto desfraldado _ barco nu de velas mortas, a ponte ando esteira vacilante, capitão-fantasma, tino avante.

Passeio de ilhas nadas _ lume brando de sereias, serenas vozes serenadas em canto verso _ deslumbrado, rima cruzada _ cavaleiras-monge _ hedionda cavalgada.

Fim dos cabos, predestino _ vaga onda recorrente, quebrantada _ mar que passa, vagueando destinada a requebra-se mansa: água errante, serei apenas, para sempre, uma vaga desaguada nas tuas ondas de menino.

23/10/06

Vão de escada com vista sobre a cidade

Todos os dias, espero por ti naquele vão de escada onde, parados, olhávamos as luzes da cidade nocturna. Nesse pedaço de degrau, aguardo calado os teus passos, enquanto a tarde vai caindo tardada, e se acompanha dos primeiros pingos das chuvas de Outono.
Fico suspenso no corrimão durante conversas a fio, porque ris e brincas, porque vês em cada luz longínqua um destino de história, porque os sons da cidade são uma banda sonora perfeita, e porque todas as palavras te fazem sentido: adoro quando te debruças sobre o parapeito da clarabóia, e em pontas-de-pés a blusa curta te desnuda a base das costas, mostrando a cintura ossuda de sempre-criança, penugem loira das carícias dos meus sonhos, que te cobrem de beijos a cada fôlego de aragem.
Depois, sento-me no pedaço descuidado de soalho gasto que me calha, essa madeira pisada onde nos tivemos inteiros noites inteiras sem darmos conta de que a chuva caía lá fora, e bebíamos num trago sôfrego todas as águas.
Mas numa manhã húmida e fresca desceste sem regresso a escadaria até à rua, e perdeste-me de ti. Então, descobri que os teus passos foram de passagem, que cá dentro apenas resto eu, todas as tábuas ficaram rasas.

Agora, subo sempre os mesmos degraus até ao vão de escada onde encontro a nossa cidade. Sento-me, e no nosso bocado de madeira carcomida espero todos os dias, tranquilamente, o fim de cada tarde.

05/10/06

Desejo capital

Gostava de ter um prostíbulo, ser patrão, dono e senhor das carnes, actrizes meigas do pecado.
Do chão nasceriam rosas, de cujas pétalas as minhas meretrizes fariam os mais doces perfumes, néctares divinos, banhando as suas formas dolicocéfalas.
Comerciante, banqueiro, produto final e gestor, gostava de ter, inteiro, um prostíbulo rentável, legal, onde as prosas, maleitas, queixumes, seriam rendas mimosas e camas desfeitas, almofadas, penas mergulhadas, lençol ou cobertor.
No meu prostíbulo, o prazer seria capital.

Mas só se venderia o amor.

12/09/06

Pequena história de um amor grande

Vimo-nos um ao outro, como duas árvores que crescem à espera do toque dos seus ramos, e conhecemo-nos sob a luz da noite, passeando nas encostas mornas de um vulcão parado, e tirámo-nos um ao outro, depois das últimas palavras serem sempre cruas, e os sons despidos nos encantarem os sentidos.

Entornámos os nossos corpos. Fizemos todos os planos e cruzámos todas as ruas, para apenas ficarmos mais um pouco. Fizemo-nos um ao outro, à espera de uma ilha mais próxima, de um dia mais curto, de uma madrugada desperta, e os últimos beijos nunca acabaram.

Morremos mais mortos que amados, e ao passar da hora nunca acordámos, porque as nossas bocas só se abriram porque se derramaram, e fomos ficando para sempre um no outro, enquanto as aragens de Outono chegavam, jorrando as fontes já sem água da terra aberta, ferida, queimada.

Depois, os dias ficaram mais curtos, deitámos nas margens molhadas todos os enganos, e as últimas tardes esqueceram-se de tudo.

Mas desta vez, o último silêncio foi meu.

04/09/06

Um mês depois.

Se as palavras nos faltam, é altura de pensar.

Ou apenas dormir.

14/07/06

Conclusão

Ela: nao tens mais nada pra fazer é?
Ele: .....
Ela: estou a brincar, não te chateies.
Ele: ....
Ela: nao te "abespinhes" (ves? ves? palavra dificil....)
Ele: ....

Incredulidade

Ela ficou com dúvidas se o texto que nasceu era sobre si, e sobre aquele momento. Ele achou por bem, embora um pouco a contragosto, dissipar as dúvidas.

Afinal, sobre a mesinha de cabeceira, não existem candeeiros. Mas a ventoínha está lá.

Quanto ao fim de tarde optimista de Outono, talvez fosse uma noite de Verão, lenta e quente.

Noite de Verão

Tinham conversas infinitas, defronte dos ecrãs suspensos que lhes amparavam as noites. Começaram a trocar momentos, e partilhar um pouco do que de único fazia parte das suas vidas.

Ela, sentada numa cadeira tosca, persiana entreaberta, aguardando a lufada de ar fresco que a ventoínha fazia correr serena, ia carregando nas teclas e no rato, dispondo notas soltas pela noite de Verão. Em cima da mesinha de cabeceira, um candeeiro brilhante alegrava o quarto.
Decidiu enviar-lhe uma gravação sua, a tocar e a cantar.

A noite dele tinha passado demasiado quente. Pela janela do quarto, totalmente escuro, entrava uma réstia da luz do candeeiro da via pública, uma luz amarelecida e triste, que iluminava a noite, sempre deserta.

O rectângulo - ecrã brilhava, solitário, e a noite ia correndo lenta. Só se ouvia um piano, velho e desafinado, e a voz dela, inocente e segura, a resistir heroicamente ao Mi bemol por vezes difícil de discernir, gravada num fim de tarde optimista de Outono.

Nesse momento, a canção ia correndo, e o tempo definitivamente parado. Defronte do ecrã, a luz amarelecida vacilou, a conversa fazia-se sem palavras.

E o quarto escuro tornou-se uma imensa caixa de música.

03/07/06

Dormíamos nuas

Dormíamos nuas,
De pernas enlaçadas e peles sentidas,
Arrepiadas pela aragem suave de Junho,
Que chegava numa golfada de cortina macia.

Dormíamos nuas,
Na paz tranquila do desejo,
Agarradas à paixão satisfeita de ser
Apenas corpos despidos que se tocam.

Dormíamos nuas,
Trocávamos dedos e mãos,
Abraçadas no aconchego vazio
Da cama quente que gemia, silenciada.

Dormíamos nuas,
E os nossos medos eram fingidos,
Viagens amadas de corpos cruzados,
Cansados de esperar à noite a madrugada.

Dormíamos nuas,
Nessa manhã de Junho que tardava,
Em que os nossos toques se nunca tocaram,
E os nossos amores nunca se acordaram.

Dormíamos nuas,
Numa manhã abraçada de Verão,
Almas tranquilas deitadas,
Num lençol quente de memórias boas.

Dormíamos nuas,
Porque vivemos muito.
E porque éramos tanto as duas,
Adormecíamos, e éramos apenas pessoas.

15/06/06

Exílio




















O autor desta foto, dedicou-a a um amigo, chinês, exilado em Paris desde os eventos de Tiannamen. Descobri-a por acaso, num site de fotografia amador.

Ser-se exilado, por causa de Tiannamen é fazer parte da História, no seu sentido mais global. É-se de carne e osso, sofre-se. E é-se parte da História.

O senhor fotografado é cego, e vive junto ao rio YangTsé, na China. Deve ter nascido ao mesmo tempo que a própria China - e nunca deve ter ouvido falar de Tiannamen...

Creio que gostava de, pelo menos, ser amigo ou conhecer uma parte da História - que magnífico privilégio!

11/06/06

Madrigal

Fui ouvir Eugénio porque era tarde, uma tarde cinzenta e bela, mergulhada em pingos de uma calma que chovia, e que falavam, caindo sem colo, perdidos na imensidão do dia.

Fui ouvir Eugénio, numa sala de pedra fria, com o chão coberto de árvores rasas, desfeitas em tábuas sem nome, e que, rangendo, sem copa morriam.

Fui ouvir Eugénio, e fui só, porque lá encontrei o mundo inteiro, nas palavras-poemas do velho mestre, morto de poesia.

Fui só, mas voltei cheio, alegre de ter sido, voltei cheio da tarde cinzenta e fugidia, e ainda creio que deixei uma chuva inteira de mim, escorrendo para sempre nas folhagens das palavras cortadas da escuridão, como ramos que tombam pregados ao chão.

Fui só, fui ouvir Eugénio, numa tarde cinzenta e fria, esperando que todas as tardes aguardem o seu renascer num novo dia.

Lisboa, 4 de Março de 2006

09/06/06

Tempo


Passou tempo a mais, desde a última missiva que coloquei neste espaço. Tempo a mais para mim, apenas.
As razões desta ausência foram várias, sobretudo um adiar da escrita para outro dia, durante dias a fio.

No fundo, quando conseguimos adiar a escrita, apenas admitimos que ela não nos convence.

Com tudo o que de bom ou mau daí possa advir, hoje já não a consegui adiar, e ela aqui fica, com alguns testemunhos da últimas semanas.

1)

"Intitula-se “Estudos sobre Cultura Popular”, a obra editada agora pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, no âmbito do IV Encontro de Cultura Popular.










O livro, com coordenação da doutora Gabriela Funk, da Universidade dos Açores, constitui uma homenagem” da autarquia e da Universidade ao escritor e investigador José de Almeida Pavão que em muito contribuiu para o reconhecimento e valor da Cultura Popular Açoriana.

A publicação desta obra surgiu do III Encontro de Cultura Popular (realizado em Abril de 2005), e inclui poemas e outros textos dedicados a Almeida Pavão por autores como Mário Cabral, Rafael Fraga, Alexandre Borges, Nuno Costa Santos e João Luís Medeiros."
in http://www.acores.net/noticias/view-12190.html

Parece que alguém gostou dos "Pássaros", que escrevi em Dezembro de 2004 e publiquei aqui no blog recentemente... menos mal.

2)









O festival já foi... e ainda promete!

28/02/06

Trago no peito

Trago no peito
A ternura das manhãs
É o efeito
De te ouvir palavras sãs

Trago o peito
À altura dos sentidos
É ser o eleito
A quem pedes teus pedidos

Trago comigo
Os três pontos do espaço
Risco contigo
Duas linhas num só traço

Trago o amigo
A quem dizes querer
E que fala contigo
Sem nunca dizer

Trago o abrigo
De quem espera nascer
No peito contido
Sem nunca morrer

14/02/06

Indisponibilidades e "Pássaros"

As últimas semanas têm sido frenéticas, impossibilitando-me de dedicar à escrita o tempo que gostaria. Naturalmente, achar que isso é mau mais não é do que expressar subtilmente uma imodéstia, que roça os limites do mau gosto - um mal que abunda por aí, e que, creio, me atingiu também na sua expansão generalizada.

Em todo o caso, tive a oportunidade recente de transformar em canção alguns textos de minha autoria, no âmbito de um novo projecto musical, "visitável" em http://2acustico.pt.vu . O site encontra-se ainda em fase de desenvolvimento, havendo alguns mp3 ainda não disponíveis, e reporta-se apenas à parte do projecto que se dedica à re-interpretação de canções de outros autores. Os temas originais, que complementam o projecto, foram reunidos em pré-gravação recente num albúm submetido aos programas de apoio para edição discográfica da Secretaria Regional dos Açores.

Entretanto, irei publicando os textos que reuni no disco, alguns dos quais foram inicialmente publicados neste blog, mas que sofreram pequenas (?) alterações aquando da sua transformação em canção. O primeiro texto, que se segue, reporta-se a 2004, não tinha ainda sido publicado, e creio ser o mais antigo dos que foram editados no disco.


Pássaros

Pássaros pousados neste fio
Esticado de fastio
Pássaros parados junto às margens
Intranquilas deste rio

Pássaros calados,
Batem as asas fechados,
E mergulham nas paragens
Emigradas do estio

Pássaros audazes,
Invadidos pouco a pouco
Vão partindo desertados,
Desaguados pelo frio

Das margens já serenas,
Inundadas de vazio,
Os pássaros voaram

E nunca mais voltaram
A chorar as suas penas
Serenadas junto ao rio

(3 de Dezembro de 2004 - revisto em Janeiro de 2006)

22/01/06

Talvez um dia

Em Lisboa, onde há madrugadas em que o nevoeira se apossa da cidade, e as ruas se tornam densas e esquivas e nos levam por caminhos incautos, vota-se o sistema. Eu não faço parte do sistema, recuso-me a integrá-lo. O sistema tem cerca de trinta anos; surgiu com a promessa de uma liberdade, uma dádiva quase divina, negada desde há muito. Haverá liberdade no sistema?

Que liberdade é esta, que me quer sujeitar às suas regras? Que liberdade é esta, que me impõe a vontade da maioria? É que, para maioria, basta apenas mais um: uma maioria de 51 contra 49 é representativa? Mas mesmo assim, tem direito de decisão sobre todos! É este o sistema.

E se eu não quiser ser da maioria, não terão as minhas ideias e vontades o direito de existir, de serem o veículo regulador da minha existência? Não temos de nos sujeitar a um Estado, só porque nascemos dentro da sua fronteira - aliás, o que é o Estado? Um conjunto de leis pelas quais se rege um grupo de indivíduos, como colegas (co-legis, que partilham da mesma lei) da mesma escola? O Estado de Direito é a única Associação ou Sociedade que conheço que obriga os seus associados a uma adesão vitalícia, imposta desde a nascença.

O sistema tem cerca de trinta anos. Baseia-se na capacidade de decisão individual como instrumento de decisão global. Mas será que o sistema dota os indivíduos dessa capacidade de decisão? E ela tem expressão global? O que sabe o eleitor da vida e das necessidades dos seus pares desconhecidos? O sistema certifica-se de que os indivíduos que o gerem possuem as competências necessárias para executar essa gestão, pelo direito de voto?

Uma larga maioria dos cidadãos não sabe quais as responsabilidades de cada orgão de Estado. Assim, da mesma maneira que para conduzir ou exercer actividades específicas temos de ter um certificado da nossa instrução (infelizmente não da nossa competência!), porque não nos é exigido um certificado de cidadania? O cidadão atingiria a maioridade, e decidia que queria ter um papel activo nos designíos do seu Estado; para isso, teria de provar o seu conhecimento da estrutura estatal. A regulamentação e idoneidade desse exame deveria seguir trâmites rigorosos, ao estilo dos exames nacionais, por exemplo (esperando que os filhos de ministros e outras figuras estatais deixassem de beneficiar de sistemas próprios). Aí, o cidadão poderia afirmar "Conheço o sistema, estou a par das estruturas, das valências da sociedade, das propostas". Sempre me pareceria detentor de alguma credibilidade...

Elegem-se ideias, pessoas, ou partidos? Elegem-se interesses pessoais ou bem comum? É que se o meu voto decide a vida da comunidade, ele deveria beneficiar essa comunidade, e não o interesse individual - parece-me ser um dos paradigmas do sistema. Por outro lado, se o sistema admite o plano superior de decisão do Presidente da República como ferramenta derradeira de gestão Constitucional, como é possível uma partidarização da Presidência da República?

Quem concorre à Presidência, é um cidadão, não um político - então, toda a influência política deveria ser banida da campanha presidencial, e os candidatos deveriam assumir a sua despartidarização. Se um partido defende ideias concretas, constituindo uma "com-panhia" (os que partilham do mesmo pão, neste caso, ideológico), um Presidente partidariamente assumido está a tendenciar o interesse social e Estadual. Que credibilidade tem um sistema que coloca como pesos da balança democrática entidades politicamente facciosas?

No fundo, a ideia de partido e de oposição é aberrante: como diria Agostinho da Silva, "a política quer-se de construção, e não de oposição: pegar no que de bom cada um defende, e avançar ". Ser do contra, opor, não é construir; mas propor algo melhor talvez seja...

Sou um cidadão que não foi bafejado pelos ventos da instrução escolástica, literária ou outra; sou um cidadão sem recursos económicos, que mora na Ilha do Corvo, e não consegue reunir, de entre os menos de 400 cidadãos que a habitam, as 7500 assinaturas necessárias para validar a minha candidatura à Presidência da República; sou um cidadão sem partido, sem credo ou cor política, sem espírito associativo, corporativista ou estatal; sou um cidadão que descobriu a solução maravilhosa para a crise que nos fazem acreditar que existe; sou um cidadão apenas diferente da maioria; sou, no fundo, um cidadão que pode votar, e integrar-se no sistema, porque a isso foi obrigado, mas cuja voz não se pode fazer ouvir.

Sou um cidadão, mas antes sou um organismo, e as leis da Natureza, da qual sou parte integrante, primordial e inegável, são supremas e é por elas, sobretudo, que me devo reger. Gosto de ver a cidade imersa no nevoeiro, com as suas luzes vincadas por auréolas baças; é a Natureza que por momentos resolve relembrar-nos de que está acima de todos os sistemas, e constitui o único Estado verdadeiramente legítimo.

Talvez um dia o nevoeiro se dissipe...

16/01/06

(O texto que se segue foi oferta de minha Mãe por ocasião do meu - recente - 28º aniversário; "Entre-vidas", numa alusão ao meu último disco "Entre-cidades".)

Entre -Vidas

Quando o menino nasceu, numa noite fria de Janeiro, a mãe pôs-lhe o nome de seus avós Rafael Alexandre. Era loiro e gordinho, lindo como todos os meninos e sorria. Sorria ás pessoas quando passeava no seu carrinho de bebé, empurrado pelo pai, quando iam as compras a mercearia do Sr. Martins que ficava numa esquina de um prédio acinzentado com portas de alumínio também cinzentas.
Depois, embalado entre o colo da mãe, do pai e da avó Fina, foi crescendo, atento e traquinas. Maravilhava-se com a chama azul-laranja do fogão a gás que espreitava na cozinha, ou fintava o tio Carlos, empoleirando-se numa cadeira para abrir a correntinha de metal que este colocara mais alto na porta da rua, para se esgueirar, sorrateiro, para a praceta de terra que fazia de campo de futebol e era a delícia dos meninos daquela rua.

Os pais trabalhavam no Liceu de Sintra e Rafael, de bibe aos quadradinhos azuis e vermelhos ficava com a avó que era directora da Escola Primária lá da zona. Aí, juntamente com os outros meninos aprendeu o sentido das cores, a limpar o joelho esfarrapado no recreio e a soletrar a palavra crescer. A avó sempre atenta, vigiava-o, afogando de mimos e ternura.
E os dias fizeram-se anos entre as margens de um tempo com travo a canela e a trevo e em que pequenos-nadas arrastaram ausências e cristalizaram o medo. Na pujança dos seus nove anos, a vida dos pais partiu-se em mil pedaços. O amor de Rafael ficou entre os dois.
A mãe levara a esperança nos seus olhos verde-água com promessas de futuro. O pai, perdeu-se em si mesmo e cinco anos depois, morreu numa madrugada de Fevereiro. Tinha trinta e oito anos e levou nos lábios o nome de Rafael. Ficou-lhe a avó Conceição para o amar pelos dois.
Na ilha, a vida foi acontecendo entre a casa da avó, onde a tia Virgínia, que ajudara a criar sua mãe o ajudava a criar também, e a nova casa da mãe que ele nunca chamou de sua. Depois veio sua avó que continuou a seguir-lhe os passos e a adocicar-lhe o caminho. Nesse tempo, nos olhos de Rafael havia searas de trigo loiro e a noite raramente tinha lua. Mas, num dia claro de Junho nasceu Edmundo. Nome grande para seu irmão que ainda era tão pequenino. Rafael fez uma lista com nomes e acrescentou-lhe Filipe e com ele foi crescendo. Seu irmão Edmundo Filipe ficou a ama-lo. Para sempre.
Depois, Rafael foi construindo a sua vida, com calma, quase lento, com a paciência de quem faz um puzzle, peça a peça, como os aviões de papel que pareciam modelos lindos da Segunda Guerra Mundial e que depois pintava com um pincelzinho com tinta que tirava de boiões pequeninos. Cultivando o gosto pela palavra e pela Biologia, era mais feliz nas coisas simples e belas da vida, pescando uma rã no charquinho da casa abandonada do vizinho, passeando com o Leão, que era a sua sombra ou indo para o mar, nadar ou mergulhar, arpoando um peixe ou um polvo.

Depois, na curva da adolescência, a música entrou-lhe na alma. Na Universidade, na algazarra de jovem, fez-se tuno nos Tunideos, e sòzinho, colado à viola, desfiava os primeiros amores em notas que escorriam como gotas, límpidas e serenas, às vezes, tristes até. Sempre que podia praticava futebol e sofria pelo Porto.
Fez-se biólogo, a pedido da mãe. Ficava mais descansada, com um curso que se visse, isto é, que lhe desse o sustento futuro. Fora criada assim, racionalizando a subsistência. Mais tarde, arrependeu-se por travar o destino do filho que queria ser músico.
Hoje, homem já, a música é a sua grande paixão. Transfigura-se quando compõe um poema nas cordas da guitarra que dedilha com a ternura como se fosse um corpo de mulher. Das suas mãos , as notas vão construindo cidades adormecidas ao pôr do sol ou falam de dor, de nostalgia, às vezes até de amor, e os sons ausentes de palavras, colam-se à pele num diálogo profundo com o corpo, e penetram numa orgia doce dos sentidos.
Sua mãe sempre soube que Rafael aprendeu que a força da partilha se chama amizade e que a palavra respeito se reescreve todos os dias. Por isso, a vida de Rafael entre-vidas se foi fazendo e no seu amor se cumpriu.


15 de Janeiro de 2006
Laudalina Rodrigues

02/01/06

Acredito

Acredito
Que se eu fosse Miguel Ângelo
Faria de ti estátua,
Mármore,
Capela fiorentina,
Basílica papal,
São Pedro - mulher.

Serias tecto,
Deusa profana.
Serias Sistina,
Estrada e ladrilho,
Calçada romana,
Arte e mister.

Serias Afrodite,
E Vênus de Milo,
Se eu fosse Miguel Ângelo.

Esculpia o teu corpo,
Granito,
Monumento de Mundo
Levando-te a alma comigo.
Mas não sou.
E afinal, por o não ser,
Acredito.