23/10/06

Vão de escada com vista sobre a cidade

Todos os dias, espero por ti naquele vão de escada onde, parados, olhávamos as luzes da cidade nocturna. Nesse pedaço de degrau, aguardo calado os teus passos, enquanto a tarde vai caindo tardada, e se acompanha dos primeiros pingos das chuvas de Outono.
Fico suspenso no corrimão durante conversas a fio, porque ris e brincas, porque vês em cada luz longínqua um destino de história, porque os sons da cidade são uma banda sonora perfeita, e porque todas as palavras te fazem sentido: adoro quando te debruças sobre o parapeito da clarabóia, e em pontas-de-pés a blusa curta te desnuda a base das costas, mostrando a cintura ossuda de sempre-criança, penugem loira das carícias dos meus sonhos, que te cobrem de beijos a cada fôlego de aragem.
Depois, sento-me no pedaço descuidado de soalho gasto que me calha, essa madeira pisada onde nos tivemos inteiros noites inteiras sem darmos conta de que a chuva caía lá fora, e bebíamos num trago sôfrego todas as águas.
Mas numa manhã húmida e fresca desceste sem regresso a escadaria até à rua, e perdeste-me de ti. Então, descobri que os teus passos foram de passagem, que cá dentro apenas resto eu, todas as tábuas ficaram rasas.

Agora, subo sempre os mesmos degraus até ao vão de escada onde encontro a nossa cidade. Sento-me, e no nosso bocado de madeira carcomida espero todos os dias, tranquilamente, o fim de cada tarde.

2 comentários:

Anónimo disse...

"Mas numa manhã húmida e fresca desceste sem regresso a escadaria até à rua, e perdeste-me de ti."

Se as perdas do outro em nós se reflectem numa solidão consciente, que sentimento dará lugar à perca de nós próprios? Um constante vazio inexplicável de quem procura em vão por um sentido de si próprio...
O corpo torna-se um invólucro vazio e a mente espera em vão, que o se perdeu se volte a reencontrar.

Fico contente em encontrar um pouco de mim em ti...

Jesus

Rafael Fraga disse...

Olá Jesus,

Vazios emocionais podem ser um obstáculo complicado ao nosso equilíbrio, sobretudo num período como o actual, em que as relações humanas caminham para cada vez mais para individualismo e menos para a individualidade.

Porém, acredito que se agirmos um pouco menos com a razão encontramos sempre um pouco de nós noutras pessoas, e as perdas são mais facilmente ultrapassadas.

Obrigado pelo post.

R.