29/11/06

A água sulca e segue

Chovia há dias, de forma quase ininterrupta. Por ele, isso não era razão para adiar o encontro, mas ela mantivera-se relutante, e só hoje acedera. Havia um Sol frio e seco, uma atmosfera vítrea que lembrava as manhãs meigas de montanhas distantes.
Ele esperava sentado à mesa, na esplanada coberta, ia olhando as gentes sempre apressadas do fim de tarde. Por momentos, os raios do Sol, quase ténues, fizeram espraiar sobre a mesa as sombras cintilantes da gasosa que borbulhava ansiosa à sua frente. Ela, a mulher esperada, chegou.
- Olá - disse, enquanto de sentava.
- Ainda bem que vieste. De facto, tem estado mau tempo...
- Sim, é verdade.
O olhar dela, mesmo acabado de chegar, mostrava alguma impaciência.
- Sabes, queria que nos encontrássemos porque tinha algumas coisas para te dizer - avançou ele tentando disfarçar a indecisão -. Depois de termos estado juntos, não sei... fiquei com a sensação de que se tinha gerado qualquer coisa, senti-me bem, quando pensava em ti.
- Ora, conversámos um pouco, era uma festa aborrecida...
- Pois, talvez... devo-me ter precipitado. Sou muito sensível a certas pessoas, e depois fico a imaginar coisas. Não devo estar habituado a gerar interesse nas pessoas, tê-las a ouvir-me quando não precisam de o fazer.
- Bem, foram conversas normais, que se podem ter com um desconhecido, ou com um conhecido de longa data - a sua face férrea apenas transparecia indiferença -.
- Talvez. É que há coisas que mexem comigo, não consigo explicar. De alguma forma, fizeste-me lembrar uma pessoa que conheci: carinhosa, preocupada e atenta, incapaz de testemunhar a injustiça com indiferença... maternal, até. A partir dela, fiquei sempre a pensar que precisava de encontrar alguém totalmente diferente, desafiadora, surpreendente, desligada do meu mundo. Mas depois conheci-te, e foi como se me tivesse resignado, como se apenas certas coisas fizessem sentido, e não valesse a penar lutar contra isso. Passei os últimos dias feliz, só me apetecia andar à chuva como se estivesse um Sol de Agosto. Mesmo fisicamente, não sei... um semblante parecido, uma elegância própria, o cabelo castanho sobre a pele morena... foi como se tivesse, ao conhecer-te, a hipótese de conhecer essa pessoa de novo, renovado...
Aquelas palavras tinham-na deixado curiosa, as mulheres fascinam-se pela emoção verbalizada de qualquer homem, sentem-no como menino.
- Essa pessoa... amaste-a? -
- Sim, amei.
-E ela amava-te?
- Tanto quanto percebi, sim.
- Então, o que aconteceu? - pela primeira vez, a sua voz vibrou incerta, e ele percebeu na fraqueza a presença da pessoa que inundara os seus últimos dias.
- O que aconteceu? Nem sei bem... - respondeu, com um franzir de sobrolho preguiçoso e optimista, enquanto se levantava da cadeira - o amor acaba, acho.
Encostou ao de leve a sua face na dela, obrigando- a a conter sozinha o "Já vais?" que engoliu seco.

À volta da esplanada, a noite chegara, e a chuva miudinha começava a cair com mais força.

28/11/06

Beijos púdicos, ideais

Não quero mais os beijos públicos, liceais.
Nem a ânsia da mão alheia,
que nos rodeia sem tocar,
nem as línguas mastigadas sob os dentes que estalam,
nem o tempero da saliva diluindo as peles macias.

Os meus beijos hão-de ser serenos,
no recanto de um quarto,
entre as quatro paredes sólidas por onde os olhares não passam,
e que barram as paixões insanas legadas ao silêncio.

As lágrimas que correrem serão curtas,
embrenhadas e feridas,
carne tenra dos gemidos,
desarme imenso de todos os sentidos.

Não quero mais os beijos públicos,
da inocência pura,
descoberta de si.

Creio que estou a ficar velho.

11/11/06

Boneca de pedra

Olá, boneca de pedra
Sei que não me ouves,
Olhos marcados de infinito
Afastados de mim.


Menina de silêncio.

As almas são de cristal
Porque fazem as palavras durar mais tempo.
As minhas, vêm de dentro.
As tuas, são apenas vento que fica.

Boneca de gesso,
Crua e despida,
Que me tiras de um só trago
Tudo o que trago desta vida!
Espero que vejas, do silêncio da redoma,
Que as palavras também doem,
E as ausências também passam.

Por isso, de castigo, ficas aí, dentro do vidro,
Acompanhada do impúbere, casto e branquinho almofadado,
Menino Jesus nado.