22/11/10

Talvez seja hora.

Nem sei se chove lá fora.
Estes vidros são como muralhas,
e os sons um distante murmurar.
Há um tic-tac,
uma pianola agonizando,
noites despejadas
nos cacos ao fim da rua.
Não adormeço, nem quero acordar.
Deve ser noite, isso sei -
os dias custam menos.

Talvez seja hora.

12/10/10

Dádiva

Havia um pôr-de-sol desmaiando, contornos de ilhas longínquas recortando horizonte e um vento, macio e fresco, que nos semeava no rosto salpicos de mar-alto.
Atrás de nós, só a espuma dos dias.
Nem o belo, nem o prazer, nem o amor - frutos de um acaso solitário: só a partilha é uma dádiva.

21/07/10

Na baía

Uma noite serena e um pedaço de onda que se desfaz espuma contra a rocha-ruído. A procissão de luzes anuncia uma outra margem, e nadamos num instante de sal Pico, peito aberto, jeito quilha.
Podia ser um rio, Oceano. Mas é o canal imenso, o espaço decano de uma margem distante, terrena: rara feita de ilha.

25/06/10

Tábua de cálculo

Passamos as folhas do calendário como um rosário de misérias. Encalhamos nos dias com a inevitabilidade de os sabermos sempre dolorosos.

Há uma idade para afagar o tempo - mas nela, não nos cala o seu passar.

22/06/10

Visões distantes

Parecem pequenas, as árvores ao longe. Delas, pássaros negros saem disparados - bando oposto de ferro em brasa na neve. Quando morrem, travestem-se de nuvem, viagem e silêncio.

Nunca uma árvore poderá ser pássaro, nuvem ou floresta - e ser árvore é, afinal, tudo o que nos resta...

03/05/10

Adormecer

Um quarto fechado
e carne.
Carne que se toca e banha
nos perfumes sensuais dos bálsamos
como água escorrendo entre areia
- quem dera ser grão.

Suspensos depois
os hálitos cansados
dos equadores virginais
- calor, humidade, paz
Névoa densa,
Janeiro são.

Depois,
abrir a fresta de janela
aos ares serenados
de uma noite fria
que nem o silêncio desfaz.

E adormecer,
enconstando a cabeça
à brisa macia que se ajeita e aninha
na pele já enxuta
de prazer.

02/05/10

Um ponto central

Sempre me fascinaram as coisas pequenas. Fazem vacilar entre o espanto do belo e o hediondo, no mistério das formas indiscretas e o sensível balanço à aragem-ventania que passa. Na sua comprovação da limitação dos sentidos remetem-nos ao meio-termo, como tampão de uma solução que nunca precipita.

Ao grito, ao sussurro, à incandescência de uma tarde gloriosa, à ânsia de um passo em noite escura, reagimos na exaltação do medo, na regulação e regresso súbito desse bem-estar súbito do médio.

Como é triste mais não se ser, em tudo, do que um ponto central na escala incomensurável do tédio...

03/04/10

Eu quero

Eu quero na cidade inteira
Um horizonte deserto
E o meu nome rasgado
Num pedaço de lama escura
Ou num círio por queimar.

Eu quero uma rua em silêncio
Um coro de finado
E os sinos em delírio
Chamando féretro à tortura
dos meus ossos por cremar.

Eu quero o edíficio da idade
Erigido sobre um monte
E o dilúvio desaguado
Afogando lentamente
A turba por irar.

Eu quero uma porta encoberta
Por um grão de areia-gente
Artifício e soro consagrado
Da virtude
Por velar.

29/03/10

Palimpsesto

Comprei os livros que amavas
tentando escrever-me em folhas também.


Busquei as palavras desconhecidas
em que as nossas conversas tropeçavam
e fui remendado pouco a pouco
os buracos que a vida colocou na minha
estrada de saber.


É que eram todas ignorantes,
as palavras,
se a linguagem pura do amor
não pode sequer ser dita!

Mas nunca isso bastou
para te fazer voar.


Em cada palavra nova
eu via dias amenos de primavera,
nas estantes cresciam ninhos
de páginas brancas repletas de
ovos por abrir!

E nunca encontrei nos livros
por que nem um adeus deixaste
no teu silêncio
de partir.

06/02/10

Dúvida

Não sei o que nos faz resistir,
chorar ou ir.

Não sei o que nos aguarda.
Mas, não poucas vezes,
parece que tarda.