10/12/09

Di-sabores

Da janela
apenas se vêem
os ramos despidos
de árvores adormecidas.

Os dias quentes
são, agora,
memória distante.

Pois deles pendem
sabores secos
noutros frutos
amargos de Primavera.

15/10/09

Germinal

Não eras rio nem mar,
nem foz nem margem.
Não eras chuva ou fonte
ou bruma, sequer.
Apenas água.

Eu nada mais era
que a semente seca
na terra por abrir.

Agora, sou árvore.
E dos meus ramos
nascem frutos
no Outono.

14/09/09

Três dias verdes-oliva

Três dias verdes-oliva
rolaram do seio
ao entre-meio feito lago
de suor ou não,
tépido suco divinal de coração
regado na manhã esperta
o canal nutritivo
de infância cerrado.
Lá, banhando-se,
afogaram o passado.

Os soçobrantes seguiram caminho
saltando as impúberes negras
delícias simiescas
até perder-se da trupe a metade
ao cair da curta tarde:
aproximou-se largo passo
da mais recôndita zona
das noites principescas
femininas do destino.

Então, parando,
que, afinal,
tudo aquilo era saliva,
o amanhã seguiu sozinho.

10/09/09

Porquê?

Porque contigo
as noites não terminam
e os dias são pequenos.
E a idade passa tão depressa
que sou novamente criança
nos teus braços.

Porque a minha razão
não encontra as razões
no meu coração, de tão cheio,
impenetrável.

Porque quando entro em ti
saio de mim,
viajo sobre o teu corpo
e adormeço recostado na tua palavra.

Porque contigo
as madrugadas são de luz
e há sempre uma vela tímida
lutando perante os nossos olhos.

Porque a tua alma é pura
e dá esperança à minha,
corrompida.
E és a estrada
e destino dos meus passos.

Porque és, afinal, a vida
do meu amor.

07/09/09

O aniversário

O Outono já passa por aqui, e bem me custa saber que se findam os dias quentes. Aqueço as mãos nos bolsos, prolongo o uso dos casacos leves do estio, mas o corpo sucumbe na adversidade dos prenúncios gelados. As tardes emagrecem, bem mais que o corpo, e o Sol, quando bate, é carícia.

Passa assim um ano de ausência de Lisboa, dos cheiros, da luz - não me despedi para antecipar o regresso, ou apenas para prolongar a memória. Mas despedi-me de pessoas - algumas, sempre memória. E dói, encarar as presenças fugazes da vida...

15/08/09

A grande Obra

O ouro transmutado
andava nas ruas
Afinal Júpiter e Saturno
eram par das sete luas
Na sua ausência de enxofre puro
Não era mercúrio
Nem a liga de um qualquer
metalóide duro.
Era o salitre, a penitência,
o ritual iniciado do Mal
O Anti-Cristo ressurrecto
da sua transcendência
de pecado feito homem:
a pedra predilecta, sombria
- Filosofal.

12/07/09

Elegia aos muros deserguidos

Não gosto de muros
nem portas fechadas
até à nossa curiosidade
nem de castelos com ameias
e pontes levadiças preguiçosas.

Que os tempos futuros
tragam rotas maravilhadas
à nossa cidade
e em dias mais belos
as sereias cantem nas fontes
noviças, carinhosas.

Entre nós,
os muros não se hão-de erguer
- silêncio, só se for música,
ou o som da nossa paz a crescer...

05/06/09

A última - primeira

Vinte, as rosas sobre a cama
- teu leito.
Nelas nos deito,
nessa noite derradeira já esquecida.

Das vinte, a que me deste sobrou,
vermelha e bela,
enfeitada à lapela.

Muito tempo passou que a guardei
rubra e terna,
perfumada ainda
da nossa manhã clara conjunta,
perdendo-se que ia
a sua estrutura de flor.

Ficaram as espinhadas
pétalas secas de amor
em que tropeçava
nas saídas atrasadas
de todos os dias,
despedidas tristes, murmuradas.

Importa sair da beleza derradeira
sem hesitação nem demora:
e atirei cruel a última - primeira
das vinte rosas pelo peito fora.

01/06/09

Os dele, os dela

Era um enleio de presságios,
os dele, os dela,
amor e meio dado
um fio de luz cinza
desprendendo-se da janela.

Era um navio,
abandeirado de cruz rubra,
e, enfunando, a branca vela
gemidos assoprados de língua turva:
- os dele, os dela.

Era uma confusão, aquilo:
mastro, escotilha, cordame
e escuro porão resguardado
rum-ando ao travo odoroso do paraíso,
infame e tranquilo alvo
de raso-soldado indeciso.

Eram uma ilha,
distante e bela,
enclavados da oceânica solidão,
receio de naufrágios:
os dele, os dela.

27/05/09

Chuvas de Maio

Chuvas pesadas de Maio
nem fico nem saio
nem remo nem me afundo.
Abrigo as palavras em gula seca
e dissolvo na boca
a vontade de aliviar o mundo.

21/05/09

Vulto na janela

Sei que espreitas pelo vidro triste
e lhe encostas o ouvido
auscultando a minha voz.

Sei dos teus caminhos desviados
a passar o meu,
das sombras nubladas
em cuidados que te amparam,
da procura fugidia
de me fazer um pouco teu.

Pensava que eram tuas
as mãos que me trariam rosas frescas
a cada manhã pura,
cavando a dedos de ternura
os sulcos dos amores passados.

Mas espreitas esguia pela triste vidraça,
e quando abro a porta
só o horizonte me sussurra
- o tempo de escutar também passa...

16/05/09

Périplo

Cá vamos, andando, andando
E as coisas vão correndo:
Quando os sítios mudam de lugar
Vemos que saímos tarde.

Cá vamos, amando, amando
E as coisas vão morrendo:
Quando as pessoas mudam de lugar
Sabemos que chegámos tarde.

Então, percebendo, percebendo
Os tempos mudam de lugar,
E as coisas, danando, danando.

Esquecemos que ficámos tarde...

10/05/09

Cruzada

Cruzo as ruas da cidade,
o chão rápido a meus pés.
No ar, vacila ainda o teu perfume de abismo,
e não é pouca a vontade de cair.
Os recantos e esquinas,
caminhadas de memórias por cumprir,
beijo de aragem - ternura
e um silêncio que entristece.

Cruzo as ruas da cidade
- ou são elas que me cruzam.
Quando chego, encontro apenas a noite:
quem me procura, passeia e adormece.

05/05/09

Auto-retrato

Havia um momento onde eu caía nos teus ombros e rolava.
A pele era tempo e eu nascia desse instante.

O toque era espaço nos momentos onde outro, igual, me abraçava.
Eu morria : colírio mitigado, quando existo, não vejo.

Nem boca nem lábios - bocado,
Nem olhos nem lágrimas - molhado,
Sequer ouvido ou escuta.

Apenas efémero - eterno
Apenas beijo.

09/04/09

M - H - S*

Havia em nossos corpos
sítio certo para o beijo
exaustos bocados, mortos,
dos naufrágios do desejo.

Havia os teus braços,
colo das fajãs,
onde me deitava oscilando
ao compasso das manhãs.

Havia uma ilha,
de silêncio abandono,
Inverno anunciado das águas
ainda mornas de Outono.

Havia, ainda, peixes cintilando,
boca encardumada,
pureza branqueada rasa
em coral de marfim.

Eras, por fim, leito de areia fina,
Praia-menina, vasa cheia das marés.
E eu era apenas a onda que vagueia,
deslumbrada,
a quebrar-se a teus pés.

* Movimento Harmónico Simples

31/03/09

Milagreiro

Faço do vinho água
Do pão, sêmola madura
Da farinha, faço grão
Da espiga, seara.
Nascente, fermentação,
Corpo, sangue eterno que bebo,
Saciando-me de sede pura.
Face, só uma.
Ressureição, nenhuma.
Madalenas, todas,
Bodas de consubstanciação ao Pai.
Motivação, motivo:

Milagre, é viver-se, já estando vivo!

17/03/09

Insondável

Seria apenas um sopro
Um gesto,
Uma memória desvanecida pelo tempo.
Um desejo esquecido,
Ou um beijo.

Seria, talvez, apenas ar,
Que de nós inteiros se fez resto
Glória de eternidade prometida,
Passeio de mãos dadas,
À beira-rio.

Seria a nossa última noite
Também a primeira
Nem sei.
Seria, talvez, um entre-meio,
Lusco-fusco de dias por nascer,
Espera adiada.

Talvez fosse, apenas, a preguiça do estio,
Ou o vento,
A embalar a madrugada.

30/01/09

O que foras

Se foras pétala
E não flor
Que, mesmo eu jardim
Não couberas, inteira
Em mim

Foras folha
não árvore densa,
Sendo eu a floresta
negra desfolhada
Imensa

Se foras gota, rio
e não nascente
Que eu mar,
te não pudera, oceano
Margear

Se foras letra,
fonema
Não palavra
melopeia
Que eu, paginado tanto,
Sou apagado reescrito
Livro em branco

Pólen floema,
sal oração.
Início caminho,
temperança e acção.

Apenas grão.
sequer sistema, terra fundida
de ferro, fogo e aço
Que, eu mesmo Universo...

Não couberas, inteira,
no infinito do meu espaço.