25/10/05

Uma vida numa noite

Conheceram-se entre duas conversas, sem nunca se haverem conhecido. Nele, a sensação concreta do abismo, uma paixão discreta, que surgiu como a aragem fria da noite de Outono; nela, a acção quase indiferente, que o seu corpo não ama a quem os olhos não vêem.
Conheceram-se numa noite, fria e calma, onde numa só conversa se versou a alma; a seus olhos, ela era bela, distante, protegida num recato só seu, sob o olhar atento de quem defende as ameias; a seus olhos, ele era mistério, graça e paz, expondo sem pejo as palavras da fluidez do encanto.
Numa só noite, viveram todas as vidas que um homem pode viver com uma mulher, e nela se amaram como se todas as noites fossem poucas para se amarem. Nessa noite conceberam um mundo, que nunca se fez carne, nem verbo, nem forma, porque assim o fizeram, porque assim se tinha de fazer.
Despediram-se no beijo que valeu por todos os beijos que perderam, e partiram, na ânsia de quem espera, como se todas as partidas tivessem partido para os conduzir ali.

Muitas noites mais tarde, reencontraram-se, de dia jamais, que o amor é ave soturna. Sentados num banco de pedra, falaram à distância de um corpo, sem verbo e sem forma, para sempre aninhado no abraço que não mais se abraçou. As mãos não se juntaram, num afago de ausência, nem os lábios se tocaram, na carícia própria do desejo, e nem os seus braços se acharam, sucumbindo os ombros moles ao regaço de quem chora.

Ficaram pesados e perdidos, à distância de um traço, diluindo na noite as deixas possíveis: entre eles, o abismo impenetrável de quem, sem nunca se haver conhecido, viveu numa noite todas as vidas que haviam para viver.