16/01/06

Entre -Vidas

Quando o menino nasceu, numa noite fria de Janeiro, a mãe pôs-lhe o nome de seus avós Rafael Alexandre. Era loiro e gordinho, lindo como todos os meninos e sorria. Sorria ás pessoas quando passeava no seu carrinho de bebé, empurrado pelo pai, quando iam as compras a mercearia do Sr. Martins que ficava numa esquina de um prédio acinzentado com portas de alumínio também cinzentas.
Depois, embalado entre o colo da mãe, do pai e da avó Fina, foi crescendo, atento e traquinas. Maravilhava-se com a chama azul-laranja do fogão a gás que espreitava na cozinha, ou fintava o tio Carlos, empoleirando-se numa cadeira para abrir a correntinha de metal que este colocara mais alto na porta da rua, para se esgueirar, sorrateiro, para a praceta de terra que fazia de campo de futebol e era a delícia dos meninos daquela rua.

Os pais trabalhavam no Liceu de Sintra e Rafael, de bibe aos quadradinhos azuis e vermelhos ficava com a avó que era directora da Escola Primária lá da zona. Aí, juntamente com os outros meninos aprendeu o sentido das cores, a limpar o joelho esfarrapado no recreio e a soletrar a palavra crescer. A avó sempre atenta, vigiava-o, afogando de mimos e ternura.
E os dias fizeram-se anos entre as margens de um tempo com travo a canela e a trevo e em que pequenos-nadas arrastaram ausências e cristalizaram o medo. Na pujança dos seus nove anos, a vida dos pais partiu-se em mil pedaços. O amor de Rafael ficou entre os dois.
A mãe levara a esperança nos seus olhos verde-água com promessas de futuro. O pai, perdeu-se em si mesmo e cinco anos depois, morreu numa madrugada de Fevereiro. Tinha trinta e oito anos e levou nos lábios o nome de Rafael. Ficou-lhe a avó Conceição para o amar pelos dois.
Na ilha, a vida foi acontecendo entre a casa da avó, onde a tia Virgínia, que ajudara a criar sua mãe o ajudava a criar também, e a nova casa da mãe que ele nunca chamou de sua. Depois veio sua avó que continuou a seguir-lhe os passos e a adocicar-lhe o caminho. Nesse tempo, nos olhos de Rafael havia searas de trigo loiro e a noite raramente tinha lua. Mas, num dia claro de Junho nasceu Edmundo. Nome grande para seu irmão que ainda era tão pequenino. Rafael fez uma lista com nomes e acrescentou-lhe Filipe e com ele foi crescendo. Seu irmão Edmundo Filipe ficou a ama-lo. Para sempre.
Depois, Rafael foi construindo a sua vida, com calma, quase lento, com a paciência de quem faz um puzzle, peça a peça, como os aviões de papel que pareciam modelos lindos da Segunda Guerra Mundial e que depois pintava com um pincelzinho com tinta que tirava de boiões pequeninos. Cultivando o gosto pela palavra e pela Biologia, era mais feliz nas coisas simples e belas da vida, pescando uma rã no charquinho da casa abandonada do vizinho, passeando com o Leão, que era a sua sombra ou indo para o mar, nadar ou mergulhar, arpoando um peixe ou um polvo.

Depois, na curva da adolescência, a música entrou-lhe na alma. Na Universidade, na algazarra de jovem, fez-se tuno nos Tunideos, e sòzinho, colado à viola, desfiava os primeiros amores em notas que escorriam como gotas, límpidas e serenas, às vezes, tristes até. Sempre que podia praticava futebol e sofria pelo Porto.
Fez-se biólogo, a pedido da mãe. Ficava mais descansada, com um curso que se visse, isto é, que lhe desse o sustento futuro. Fora criada assim, racionalizando a subsistência. Mais tarde, arrependeu-se por travar o destino do filho que queria ser músico.
Hoje, homem já, a música é a sua grande paixão. Transfigura-se quando compõe um poema nas cordas da guitarra que dedilha com a ternura como se fosse um corpo de mulher. Das suas mãos , as notas vão construindo cidades adormecidas ao pôr do sol ou falam de dor, de nostalgia, às vezes até de amor, e os sons ausentes de palavras, colam-se à pele num diálogo profundo com o corpo, e penetram numa orgia doce dos sentidos.
Sua mãe sempre soube que Rafael aprendeu que a força da partilha se chama amizade e que a palavra respeito se reescreve todos os dias. Por isso, a vida de Rafael entre-vidas se foi fazendo e no seu amor se cumpriu.


15 de Janeiro de 2006
Laudalina Rodrigues

1 comentário:

Anónimo disse...

Onde posso encontar o "Entre-cidades? FNAC? onde?