22/01/06

Talvez um dia

Em Lisboa, onde há madrugadas em que o nevoeira se apossa da cidade, e as ruas se tornam densas e esquivas e nos levam por caminhos incautos, vota-se o sistema. Eu não faço parte do sistema, recuso-me a integrá-lo. O sistema tem cerca de trinta anos; surgiu com a promessa de uma liberdade, uma dádiva quase divina, negada desde há muito. Haverá liberdade no sistema?

Que liberdade é esta, que me quer sujeitar às suas regras? Que liberdade é esta, que me impõe a vontade da maioria? É que, para maioria, basta apenas mais um: uma maioria de 51 contra 49 é representativa? Mas mesmo assim, tem direito de decisão sobre todos! É este o sistema.

E se eu não quiser ser da maioria, não terão as minhas ideias e vontades o direito de existir, de serem o veículo regulador da minha existência? Não temos de nos sujeitar a um Estado, só porque nascemos dentro da sua fronteira - aliás, o que é o Estado? Um conjunto de leis pelas quais se rege um grupo de indivíduos, como colegas (co-legis, que partilham da mesma lei) da mesma escola? O Estado de Direito é a única Associação ou Sociedade que conheço que obriga os seus associados a uma adesão vitalícia, imposta desde a nascença.

O sistema tem cerca de trinta anos. Baseia-se na capacidade de decisão individual como instrumento de decisão global. Mas será que o sistema dota os indivíduos dessa capacidade de decisão? E ela tem expressão global? O que sabe o eleitor da vida e das necessidades dos seus pares desconhecidos? O sistema certifica-se de que os indivíduos que o gerem possuem as competências necessárias para executar essa gestão, pelo direito de voto?

Uma larga maioria dos cidadãos não sabe quais as responsabilidades de cada orgão de Estado. Assim, da mesma maneira que para conduzir ou exercer actividades específicas temos de ter um certificado da nossa instrução (infelizmente não da nossa competência!), porque não nos é exigido um certificado de cidadania? O cidadão atingiria a maioridade, e decidia que queria ter um papel activo nos designíos do seu Estado; para isso, teria de provar o seu conhecimento da estrutura estatal. A regulamentação e idoneidade desse exame deveria seguir trâmites rigorosos, ao estilo dos exames nacionais, por exemplo (esperando que os filhos de ministros e outras figuras estatais deixassem de beneficiar de sistemas próprios). Aí, o cidadão poderia afirmar "Conheço o sistema, estou a par das estruturas, das valências da sociedade, das propostas". Sempre me pareceria detentor de alguma credibilidade...

Elegem-se ideias, pessoas, ou partidos? Elegem-se interesses pessoais ou bem comum? É que se o meu voto decide a vida da comunidade, ele deveria beneficiar essa comunidade, e não o interesse individual - parece-me ser um dos paradigmas do sistema. Por outro lado, se o sistema admite o plano superior de decisão do Presidente da República como ferramenta derradeira de gestão Constitucional, como é possível uma partidarização da Presidência da República?

Quem concorre à Presidência, é um cidadão, não um político - então, toda a influência política deveria ser banida da campanha presidencial, e os candidatos deveriam assumir a sua despartidarização. Se um partido defende ideias concretas, constituindo uma "com-panhia" (os que partilham do mesmo pão, neste caso, ideológico), um Presidente partidariamente assumido está a tendenciar o interesse social e Estadual. Que credibilidade tem um sistema que coloca como pesos da balança democrática entidades politicamente facciosas?

No fundo, a ideia de partido e de oposição é aberrante: como diria Agostinho da Silva, "a política quer-se de construção, e não de oposição: pegar no que de bom cada um defende, e avançar ". Ser do contra, opor, não é construir; mas propor algo melhor talvez seja...

Sou um cidadão que não foi bafejado pelos ventos da instrução escolástica, literária ou outra; sou um cidadão sem recursos económicos, que mora na Ilha do Corvo, e não consegue reunir, de entre os menos de 400 cidadãos que a habitam, as 7500 assinaturas necessárias para validar a minha candidatura à Presidência da República; sou um cidadão sem partido, sem credo ou cor política, sem espírito associativo, corporativista ou estatal; sou um cidadão que descobriu a solução maravilhosa para a crise que nos fazem acreditar que existe; sou um cidadão apenas diferente da maioria; sou, no fundo, um cidadão que pode votar, e integrar-se no sistema, porque a isso foi obrigado, mas cuja voz não se pode fazer ouvir.

Sou um cidadão, mas antes sou um organismo, e as leis da Natureza, da qual sou parte integrante, primordial e inegável, são supremas e é por elas, sobretudo, que me devo reger. Gosto de ver a cidade imersa no nevoeiro, com as suas luzes vincadas por auréolas baças; é a Natureza que por momentos resolve relembrar-nos de que está acima de todos os sistemas, e constitui o único Estado verdadeiramente legítimo.

Talvez um dia o nevoeiro se dissipe...

5 comentários:

Caiê disse...

Nevoeiro... Era mais poético - musical?;) - dizer brumas... Mas em Lisboa não há disso. ;)

Anónimo disse...

Talvez...

Anónimo disse...

... vi-me na obrigação de comentar apesar deste comentário ja vir tarde, mas só agora li o que escreveste, e digo-te que concordo em parte! que o sistema não é perfeito é verdade, longe disso até, que a nossa liberdade não é plena também já sabiamos!!! mas ... que liberdade queres? uma liberdade anárquica? em que cada cidadão tenta prevalecer a sua liberdade à do vizinho?
é verdade também que temos leis... leis que nos permitem ser livres... não completamente... mas permitem-te seres livre no que escreves, no que compões, no que fazes, dizes ou pensas... permitem-me a mim concordar ou não!
... tens tanta liberdade... podes viver ou não em função das leis, podes quebrá-las... pois sabes quais as consequências! podes procurar outras leis, mudar de país ou resignar-te a viver com estas leis... injusto seria se a lei fosse feita após cada "infracção"... como um assassino que depois de apanhado não sabe se é preso, enforcado, ou torturado... mas tu sabes,
... sabes as consequencias... logo podes escolher, concordar ou mesmo tentar mudar!!!
nao tenho tanto jeito para escrever como tu... e gosto da tua critica (muito até) mas acho que o dificil não é criticar, dificil é arranjar alternativa!!!
não é o presidente que faz um pais!!!

Anónimo disse...

O único ser inteligente é o Homem, e como tal o único verdadeiramente livre. Ironia ou não da Natureza, é o único que oprime, que mata, que se comporta com um "animal", que põe em causa a liberdade do outro por uma qualquer razão. Um ANIMAL age de acordo com as leis da Natureza. O HOMEM, esta identidade paradoxal necessita de regras porque é livre!?
PS: Descobri por um feliz acaso este Blog...Lindo!

AMOR SOMENTE AMOR disse...

Por um acaso hoje li, aquilo que sinto escrito por outrem. Não tenho belas palavras para expressar como você; mas ao longo da minha vida descobri que não tem como viver fora deste sistema egoista e autoritario. Somos dependente do dinheiro e o mesmo faz parte do sistema e a quantia deste te posiciona no sistema e a diferencia está ai...
Eu triblo o sistema naquilo que posso desde que não afeta outrem, já não sou escravo do trabalho nem mesmo do dinheiro e assim paso aos meus filhos adeias mais humanas e amorosas, para que no futuro venham ser concluidas ou analizadas.
Não desista dos seus sonhos pois eles serão realizados em breve.