28/11/05

Sete horas em Lisboa

Passa o primeiro comboio e a cidade acorda. Cães longínquos vão latindo, distantes, e os grilos, já escassos, recolhem-se, solidários.
Ao longe, o silvar da mecânica urbana vai nascendo; na rua do lado, que espreito sob a janela, passam carros discretos, ainda lentos. A pouco e pouco os prédios vão-se despindo por dentro, as suas fileiras de gentes laborais semi-dormidas iniciam a mesma alvorada de todos os dias.
Já há luz, o ruído da engrenagem urbana, ainda que distante, torna-se invasivo, e fecho a janela por onde a aragem extinta da noite passava, entreaberta.
Os carros passam seguidos, cruzando as ruas enfileiradas de prédios abandonados.
O vizinho de cima levanta-se num salto, e inicia a sua oração cambaleante de resmungos entre alívios.
Já nem os cães se ouvem, quando deixo a cidade acordar em paz, e adormeço.
Partindo, levo Lisboa comigo, deixando a cidade atrás.


Mas nunca a esqueço.

18/11/05

Há um trilho que piso,
Porque sou chão, estrada.
E caminho.

Há o ar que respiro,
Porque sou célula, pulmão.
E destino.

Há os mares que cruzo,
Sou ilha, descoberta.
Sou um rio que corre só,
Sou planície e Deserta.

Há uma árvore que tomba,
E outra que nasce.
Quando sou terra, semente,
Ou lâmina e aço.


Sou linhas e curvas,
E réguas, compasso
Se sou tinta, abandono.
Se sou ponto, sou espaço.

Há uma sombra que me colhe,
Sou aragem, fim de tarde.
Maio.

Há o abismo que me chama,
Porque sou escarpa, e sem razão.
Caio.

Há as palavras que evito,
Pois sou carta, sou correio.
Mensagem destemida,
Sou pergunta que receio.

Há uma réstia de sal,
Já sem sangue, só ferida
Sou um mar morto que afaga.
Pois sou Faro, sem salina.

E porque sou tanto do mundo e sou tão pouco,
E todos os dias me custa tanto só ser,
Espero ser todo o mundo mais um pouco,
Para que todos os dias me possam sempre nascer.

10/11/05

Clara

Clara não é bela.
Ou é-o, à sua maneira, dela,
muito bela de ser.

O seu jeito é tímido, reservado;
o sorriso, ousado, perfeito em não se conter.
Clara desliza, flutua.
Os seus olhos são belos pelo olhar;
a sua boca pelas palavras.
As suas unhas, roídas, inquietas,
ficam, em Clara, escondidas,
nas mãos cerradas, quase nunca abertas.
O cabelo, castanho desalinhado,
é belo porque existe,
encimado no seu corpo estreito.

Quando Clara quer, Clara cumpre.
Clara sonha, Clara faz.


Amar Clara deve doer, a não ser o amor sem jeito que Clara já traz.
Eu não a amo, mas amo Clara – se é que me faço entender:

É que, sem ser bela, Clara tem, pura,
toda a beleza do mundo,
à sua maneira bela,
muito dela,
de ser.

Lisboa, 2 de Novembro de 2004


(Há cerca de um ano, era assim. E ainda ontem a vi...)